quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

DA LAMA AO VINHO. VIVA A MARINHA! - Por João Marinho

 


Da Lama ao Vinho, Viva a Marinha!

 

Nasci em 1951 no seio de uma família numerosa, vindo da zona da mata norte do Estado de Pernambuco, como tantas outras, enfiada em uma favela sem a mínima estrutura social, ambiental, cultural religiosa, de saúde e outros tanos requisitos tao comuns hoje em qualquer sociedade, seja rica, ou seja, pobre.

O Brasil de hoje espelha um progreso social de tal monta que na minha visão atual remontaria um país de melhor qualidade neste âmbito, caso sobrevivessem tantas crianças mortas pela fome e pela falta de assistências fundamentais, porém com formação pessoal de qualidade pela educação rígida da época e pela quase inexistência de mazelas do mundo de hoje: drogas, contrabados, álcool, libertinagens generalizadas, falcatruas políticas, desmando dos poderes e outras.

Do zero aos 16 anos vivendo na mais completa liberdade, pois só estudei até a 5ª série do ensino primário e, até então sem expectativa de um futuro profissional ou familiar, já que abandonara os estudos sem a menor interferência dos meus pais que não tinham condições de sustenter os filhos, além do mínimo alimento possível em quantidade e qualidade.

Daí então, findando a década de 60, época conturbada por movimentos e revoluções, meu velho e analfabeto pai, preocupado com o futuro dos filhos mais novos, resolveu inscrever a mim e a meu irmão na Marinha, cuidando de pedir nosso maior empenho para que conseguíssemos aprovação nos exames, pois ali morava, talvez, a única e boa chance para as nossas vidas e foi justamente o que aconteceu somente comigo, sendo meu irmão reprovado e servi de molde de qualidade para duas vidas distintas, uma projetada, construída, polida e qualificada com muito esmero na Marinha do Brasil e outra, que teve boas chances e que se debate até o presente sem nunca conseguir o desjável em qualidade, cultura, arte, talento, dinámica, profissionalismo, sociabilidade etc.

Exatamente em 25 de junho de 1968 estava eu ingressando na Escola de Aprendizes-Marinheiros de Pernambuco (EAMPE) sobre os meus potentes 47 quilos de peso e uma tonelada de sonhos na cabeça para enfrentar um período infinito e duro de 30 dias chamado de adaptação, para mostrar que estava apto a fazer parte da Turma Índia e que duraria mais 13 meses em regime de internato com folga somente nos finais de semana. Bravamente, eu, magrinho, narigudo, numerado de 131 e alvo de chacotas neste meio de adolescentes, recebi logo o apelido de Bruxa, segui calmo e mansamente mês a mês na rotina de estudos, trabalhos, diversões, esportes, responsabilidades e muita competitividade pessoal entre os 522 alunos. Morria de medo nas aulas de judô e boxe por ser muito fraquinho.

Agora é janeiro de 1969 e com ele o juramento à Bandeira Nacional e o prazer da primeira promoção da vida marinheira - grumete, o que me dava o primeiro aumento salarial e a cantina por certo estaria vendendo e ganhando mais, pois era ali que deixava a maior parte da minha renda, era também o começo da outra metade do curso e tinha o desprazer de ver por volta de dez por cento de baixa da Turma. Segui bravamente porque somente quem passou por essa universidade de ensino marinheiro é quem sabe o quanto é bom e sofrido aquele período. Bom porque todos os ex-alunos se remetem a EAMPE durante toda a vida, na ativa ou na reserva e sofrido porque, concluído o curso, enfrenta-se uma vida naval dura e variada.

Chega agosto de 1969 e com ele o mês da formatura, mais uma promoção – marinheiro - e a cruel despedidia da EAMPE para, então, diplomado em todos os segimentos, pois ali tive aulas de disciplinas propedêuticas e profissionais, tais como: artes navais, navegação, pinturas, nós, remos, reparos navais, socorro e salvamento, além de moral e civismo, higiene e saúde e por fim a grande instrução militar naval que nos conduziu a uma educação exemplar em toda a carreira e que tornou a Turma Índia um orgulho para a Marinha do Brasil.

Tive ainda no período escolar alguns dias de viagem na Corveta “Ipiranga” para adaptação na vida do mar e três meses antes de concluir o curso uma viagem interestadual, premiada para a Turma, aos portos de Natal, Fortaleza, São Luis e Belém, o que nos qualificaram ainda mais.

Encerrado o curso veio a oportunidade de por em prática todos aqueles conhecimentos adquiridos que foram ministrados da melhor forma pelos competentes mestres a quem dedico tanto carinho e reconhecimento pelo êxito alcançado. Fui distribuído para o Rio de Janeiro para servir à esquadra brasileira no CT “Paraíba” (D-28). Ali servi com muita honra por 23 meses em rotina de muitas viagens ao exterior (Argentina, Venezuela, Porto Rico, Trinindad e Tobago, Martinica) e dentro do país, onde adquiri meus conhecimentos que serviram para toda a carreira.

Transferido de volta para o Nordeste, voltei a servir na gloriosa Escola de Aprendizes-Marinheiros de Pernambuco por um ano completo e, por ter sido selecionado para cursar radiotelegrafia, trabalhei na sinalaria da OM como titular até o meu desligamento para o curso profissionalizante na Estação Rádio da Marinha no Rio de Janeiro.

Até então, muito pouco mudou, pois longe da família, morando sempre nos locais onde servia e com o pequeno salário da época, não poderia haver progresso. Terminei o curso com uma bela classificação e que me deu o direito de escolha, havendo oportunidade de voltar ao Recife. Sendo assim, fiquei mais sete anos seguidos que foram fundamentais, vindo a nova promoção de cabo, meu casamento e a consequente formação da família com quem vivo até o presente.

As responsabilidades e os incentivos familiares me levaram a estudar e prosperar na vida militar, fazendo vestibular e vários cursos dentro e fora da Marinha, quando em 1982 alcancei a Escola de Formação de Sargentos e com uma profissão que me garantia promoções em épocas certas, alcancei a graduação de suboficial e uma estabilidade na vida.

Caminhei por organizações de terra e navios, sendo durante todo esse tempo desde operador de comunicações até inspetor de navios e instrutor. Concomitantemente, segui cuidando da família, o que me levou a formar minha filha em medicina veterinária, hoje um expoente e competente fiscal federal do Ministério da Agricultura em Pernambuco, aprovada em 18º lugar entre 30.000 candidatos, motivo de muitos elogios profissionais o que me enche de orgulho e certeza de que minha competência é fruto de uma formação moldada e qualificada pelos pobres e educados pais e pela Marinha, a quem devo quase tudo de minha vida, também da participação constante e ativa do pessoal da minha Turma, que desde 1968, quando nos encontrávamos ou servíamos juntos, usávamos o respaldo da irmandade, do cleguismo, do companheirismo e da colaboração, adquiridos basicamente nos idos da EAMPE.

Meu velho pai faleceu aos 63 anos em 1968 esbanjando felicidade e não perdia a oportunidade de apresentar a qualquer pessoa o seu filho terceiro-sargento da Marinha, pelo qual exibia muito amor e orgulho. O fato negativo de todos esses anos é que sendo telegrafista de serviço de zero às 04 horas no Rebocador “Almirante Guillobel”, recebi em lágrimas a mensagem de falecimento do meu próprio pai e, estando o navio em missão de socorro e salvamento, não pude comparecer ao seu funeral.

Hoje, aos 58 anos, cuidadosamente bem vividos, satisfeito e feliz por ter atingido o mai alto escalão de Estado-Menor da Gola, financeiramente sem queixas, morando próximo à comunidade onde nasci e com certo imbróglio sentimental, pois diariamente passam em minha porta, pedintes que faziam parte da minha origem e agora me chamam de doutor para fazerem seus pedidos. Todas as vezes que isto acontece, me remete ao passado e me traz a certeza de que lutei honestamente pela vida e pelo sucesso.

Um a história marcada pela infância pobre e cheia de fome, em contraste com a chegada da velhice tranquila, equilibrada e acima de tudo, feliz.

 


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